Descascar

2016

Texto para Descascar - Residência artística na Casa Caiada- SP em maio de 2016

Mapas, mundos

Ao longo das disputas que conformaram a narrativa histórica sobre a arte dos últimos 60 anos, a precariedade com frequência é evocada como valor positivo. Seja na vasta produção Povera italiana ou nas investigações de Artur Barrio sobre o significado da prática artística no terceiro mundo, a precariedade foi um elemento poético que com frequência traduziu uma posição política sobre a nossa sensibilidade e uma tentativa de trabalhar a partir de materiais e elementos mínimos, e por isso mesmo radicalmente significativos. Dessa maneira, a precariedade real que está na base de alguns desses trabalhos opera a favor da força poética da obra e oferece uma experiência desespetacularizada da produção artística.

A exposição Descascar, de Isabela Stampanoni, parte dessa premissa para explorar possibilidades do site specific enquanto forma discursiva. A partir de uma residência de dez dias na Casa Caiada – híbrido de ateliê e espaço expositivo gerido pelo artista Lourival Cuquinha na Barra Funda, em São Paulo –, Stampanoni produziu, nas paredes internas e externas do lugar, um desdobramento da sua investigação em curso sobre a representação cartográfica do mundo.  

Divididas em dois grupos, as obras da exposição estão instaladas em espaços diversos da Casa Caiada – a escada de entrada, o pátio interno, uma parede externa e o espaço propriamente expositivo. O primeiro conjunto é formado por intervenções que se apropriam do espaço tomando partido de um acidente aparentemente banal: a presença de infiltrações de umidade nas suas paredes. A partir delas, Stampanoni raspa a tinta e o reboco deteriorados para, em um processo que alterna escavação e acréscimos de linhas e áreas de cor, desenhar vastos mapas imaginários sobre as paredes “doentes”.

Esses mapas não são, no entanto, acenos de mundos imaginários ou utópicos. Construções aleatórias, eles exploram as texturas que surgem pela ação da água sobre as estruturas materiais sem buscar consertar ou esconder a decadência provocada ali. Stampanoni, ao contrário, utiliza-se do defeito e da falha como forma de produzir uma cartografia mais exata: quanto mais variados são os danos na parede, mais rico em detalhes e caminhos será o mapa.  

O trabalho é iniciado pela escavação das camadas infiltradas, aproveitando no desenho as diferentes texturas dos materiais utilizados na construção, assim como eventuais cores que surjam. É esse mapa base, fornecido pelo próprio suporte material, que receberá a intervenção da artista, adicionando sobre a superfície outras cores, linhas e, em alguns casos, textos, de forma a mimetizar e deformar a prática cartográfica. Dessa maneira, a parede determina como o trabalho pode se desenvolver em mapas mais ou menos organizados; suas reentrâncias e saliências se tornam lagos, cadeias montanhosas, vulcões, estradas que não levam para lugar nenhum e rios cujo percurso é às vezes interrompido sem lugar que receba o seu deságue.  

Por fim, os farelos que são resultado da escavação – pedaços de reboco e massa com formas variadas – permanecem no chão abaixo das obras como indícios do trabalho promovido contra a parede. Alguns, resgatados desses montinhos de restos, evocam fragmentos de continentes e desenhos de países, e compõem novos mapas sobre as paredes “sãs” do espaço expositivo.  

O segundo conjunto de obras se aproxima e ilumina as intervenções realizadas nas paredes. Trata-se de um grupo de telas que integrou a exposição Passagens Estreitas (2010), individual de Stampanoni realizada na Fundação Joaquim Nabuco, em Recife. O conjunto de trabalhos explorava graficamente a representação de estreitos geográficos e, por analogia, outras passagens estreitas, recolhidas a partir da experiência pessoal da artista tanto em passeios por Recife quanto na observação atenta de momentos e objetos cotidianos. Desse conjunto, a artista trouxe representações de mapas que mostram estreitos geográficos existentes no mundo. A nitidez das fronteiras, observadas aqui no nível do detalhe, é mostrada somente como intervalos de terra e água e produz como resultado uma série de imagens abstratas em azul (a água) e branco (a terra). Elas não deixam de evocar, contudo, a experiência e a perspectiva do imigrante, que enxerga nas divisões e intervalos territoriais obstáculos às promessas de vida no país estrangeiro – promessas que as fronteiras organizam e limitam.  

Nessa espécie de mapoteca que Descascar reúne, as obras tomam partido de uma variação do “tempo lento” de que fala Milton Santos para refletir sobre a busca por um lugar no mapa – um lugar no mundo –, tanto do imigrante que se descola da sua terra natal perseguindo outros futuros quanto do artista que, territorializado, precisa escavar seu lugar face ao nosso recalcitrante terceiro-mundismo. Esses mapas falam também, por outro lado, de uma política menor, cotidiana, que responde bem humorada às pequenas falhas que preenchem a vida diária e à sua precariedade. Produzida a partir do embate entre construção e decadência – ou, em outros termos, das oscilações entre presença e ausência –, Descascar propõe um exercício de imaginação borgeana sobre a prática cartográfica, em que  pensamento geopolítico e reflexão lúdica se combinam e rascunham a conquista de um outro mundo.

texto por Gabriel Bogossian

 

Imagens de Descascar - Residência artística na Casa Caiada- SP em maio de 2016

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