Viver na cidade é viver através da cidade. Em fluxo constante, as cidades são experienciadas em distâncias, percursos e trajetos. É necessário chegar para fazer qualquer coisa, portanto, cidade é transporte. Nenhum motivo é grande o suficiente para uma rua parada ou uma avenida interditada. As cidades parecem grandes organismos nas quais uma veia coagulada é uma ameaça de morte. Porém, se a cidade não pode parar, há aqueles que só podem se movimentar limitadamente.
Para a grande maioria da população, o ônibus é a única (im)possibilidade de mobilidade. Em 1994, a passagem mais utilizada pelos recifenses (anel A) custava 33 centavos. Hoje, 23 anos depois, pagamos 3 reais e 20 centavos para nos deslocar. A consequência é a vivência diária do limite do deslocamento. A mercadoria chega, tem que chegar, o trabalhador (quando mercadoria) chega, tem o seu vale-transporte garantido para trabalhar, mas para qualquer outra intenção tem que arcar com os reais a mais. Para quem não pode: viver na cidade é viver em ilhas. Não é raro que se saiba desses aumentos pelo cobrador na hora da viagem. Porém, é nos veículos de comunicação que se propaga um discurso legitimador do processo. No dia do aumento, saem notícias que explicam os motivos e as melhorias que o custo a mais representará. O jornal – apesar das suas transformações – ainda é visto como o detentor do discurso sobre os fatos. Estar nos jornais é ganhar o estatuto de verdadeiro, não estar é cair na possibilidade do invisível, da inexistência. Nesse sentido, o jornal constrói a cidade, cria referenciais para um sentimento de partilha e de comunidade.
O objetivo desse projeto foi duplo: pensar a cidade e como se pensa ela. Não foi apenas tensionar a materialidade dos reais a mais da passagem, mas também a do discurso que se propõe como detentor do real: o jornal. Para tal, foi feita uma pesquisa com o intuito de coletar as matérias veiculadas sobre os aumentos de passagem desde 1994, sendo escolhidos 1996, 2000 e 2005. Através de um processo de edição dos originais, foram inseridas disrupções discursivas, ou seja, o texto foi, em parte, modificado de forma não explícita. Nesse sentido, esse trabalho se propôs a colocar o ficcional no espaço da verdade: o jornal. Após as alterações, o produto físico – 1500 páginas de jornais – foi distribuído em 303 casas e 4 bancas de jornal. Os dias da distribuição se deram na época do último aumento das passagens em Recife, uma coincidência reforçou a atualidade da discussão proposta. É o registro desse processo de distribuição, assim como os jornais veiculados, que se encontra agora em exposição. Apesar da centralidade do processo anterior à exposição, as fotos – antes pensadas como mero registro – revelaram um potencial estético não previsto, virando um estudo involuntário das fachadas recifenses.
Os jornais não foram confeccionados como objetos artísticos, mas como possibilitadores de um processo. Acredita-se que ele possa ter tido interpretações muito diferentes das imaginadas. O que mais do que um problema, é visto como a grande potencialidade do trabalho. Por isso, que eles tinham que ir para as ruas, espaço no qual a arte se justifica pela potencialidade da produção do dissenso. Pois, ao veicular uma polifonia de versões, gera-se o problema, ou seja, a realidade perde o caráter de uma coerência a ser aceita.
*Trabalho feito em parceira com Guilherme Benzaquen