Arte como o Lado de Fora das Identidades: 66 Notas à Margem da Margem. Marcelo Coutinho

Arte como o Lado de Fora das Identidades: 66 Notas à Margem da Margem

 

1. Há de se pensar as diferenças entre os conceitos de identidade e de singularidade.

2. As identidades demarcam territórios e afirmam um reconhecimento, o compartilhamento de um reconhecimento.

3. A ideia de identidade está marcada dentro da própria palavra. E na bacia semântica que funda sua família etimológica...

4. Identidade: identificação, idem, idêntico.

5. Há na ideia de “idem”, a noção de “mesmo”.

6. Portanto, de “permanência”.

7. E na ideia de “idêntico”, há a noção de “igual”.

8. Portanto há, na ideia de idêntico, a noção de “idêntico à algo....”

9. Chegamos aqui a ideia de “modelo” e “cópia”...

10. E muito rapidamente chegamos a outra noção: a noção de “idealização”.

11. Todo modelo é uma idealização. E as idealizações, é bom lembrarmos, só participam da vida como sendo seu reverso.

12. Há portanto na ideia de “identidade” algo que se quer fixo, algo que é externo ao tempo.

13. O idêntico só existiria, só seria possível, fora do tempo.

14. É certo que as teologias falam de algo fora-do-tempo, de algo não é sequencial, lugar onde tudo já ocorreu e está para ocorrer... mas este não é o nosso caso agora... tampouco do ser que temos como tema agora.

15. As rochas e as montanhas podem nos conclamar uma pré-configuração de eternidade, de ausência de movimento.

16. Ausência de movimento... portanto, a noção de identidade.

17. Identidade... identicidade... idêntico a si mesmo.

18. Porém, esta percepção de eternidade e de identidade (essa fidelidade mineral) a si mesmo...

19. Que pressupõe uma imobilidade...

20. Imobilidade que as rochas nos emitem...

21. É ilusória...

22. Pois as rochas são, assim como nós, expressões de uma mesma natureza: o tempo.

23. Neste exato momento, as rochas estão se dobrando...

24. Ou se desdobrando...

25. Neste exato momento, as rochas estão se tornando pó...

26. Nem as rochas são fieis a si mesmas...

27. Mesmo as rochas, estão em devir...

28. A natureza das rochas é ir na direção de seu “fora”.

29. Uma alternativa a esta fixação das identidades é pensar junto com Bergson e Deleuze: o ser é tempo.

30. Tudo o que há é tempo.

31. O que define o tempo é uma sucessão.

32. O idêntico só existiria, só seria possível, fora do tempo.

33. A natureza do ser... de tudo que é... é diferir de si mesmo.

34. Por isso Bergson diz que o Ser difere de si mesmo.

35. Pois o ser é temporal. Ele é a encarnação do tempo. E assim, diferindo de si mesmo... dá-se a sua natureza de ser movimento.

36. E de ser “diferença”.

37. O conceito de “identidade” vai além de gênero ou raça, e pode ser aplicado para as linguagens também.

38. Há uma “identidade cinematográfica” a ser conclamada.

39. Há uma “identidade literária” a ser apontada.

40. Há uma “identidade teatral” a ser exibida.

41. Há uma “identidade filosófica” a ser defendida.

42. Mas como seria possível pensar o conceito de identidade quando pensamos em tempo, fluxo, duração, devir?

43. E como seria possível pensar que a arte seria expressão de uma identidade?

44. Sim, esta questão surge, inevitável, quando pensamos que a arte é movida, antes, por uma força de desmanche e demolição.

45. A arte não seria exatamente a entropia das identificações?

46. Afinal, a arte parece ser movida por uma espécie de “isso”.

47. “Isso”: Um pronome demonstrativo, genérico e inexato. Um tipo qualquer de resto, de sobra indefinida.

48. “Isso” que toma o corpo e arrasta a percepção não é linguagem. Mas impele a linguagem a falar.

49. “Isso” cuja natureza é escapar das nomeações.

50. Bárbara e pagã, esta presença impele os batismos, atrai os discursos e move as nomeações.

51. Diante desse abismo, a linguagem percebe-se arruinada. E por “Isso” a linguagem se contorce, falando apressada, erguendo apavorada suas novas ruínas.

52. O que mantém o perene dizer das linguagens é a percepção de que seu próprio dizer é a expressão de uma queda.

53. O que move a arte é “isso” sempre de Outra natureza.

54. A arte, impelida por "isso", tinge o mundo com seu hálito. E se impõem como o mais sólido miolo do sentido.

55. Estes fragmentos fugazes de sentido produzidos pela arte, invadem e se evadem rapidamente os corpos.

56. Por isso são comparáveis a um incêndio.

57. Pois este breve sentido instaurado pela obra de arte calcina toda certeza.

58. Põe aquele corpo arrebatado em um caminho de fuga.

59. Incute naqueles olhos a certeza de que toda fixação, todo descanso, todo domínio e posse é vã ilusão.

60. Este “isso”, esta força cuja natureza será sempre marginal (marginal exatamente por fugir dos centros que in-forma a arte), é anterior as linguagens.

61. E, como disse a pouco, “isso” é a força que impele a linguagem a falar.

62. Mas não se confunde como aquilo falado pela linguagem.

63. Podemos pensar que a arte seria então força entrópica, energia que põe em devir todo instituído.

64. Afinal, as linguagens também podem ser pensadas como sendo mais uma instituição. Mais uma instituição entre instituições.

65. A arte sendo impelida por “isso” estaria, portanto, para muito além da margem.

66. Estaria naquele lugar indicado pelo poeta Augusto de Campos: “À margem da margem”.

 

(Marcelo Coutinho, Casa-Canil, verão, Hemisfério Sul, 2018)

Texto-fala produzido para a mesa “Memória, Curadoria e Política” que fez parte da Mostra de Cinema Walfredo Rodriguez, em João Pessoa, PB. Foi um prazer estar com Janaína Oliveira (pesquisadora de cinema negro, feminista), com Caroline Oliveira e Janaina Quetzal cineastas e produtoras da Roda! Filmes a quem agradeço o convite.

 

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