Pequeníssimo manual para sobreviventes artistas sem obras

O Pequeníssimo manual para sobreviventes artistas sem obras é um texto dividido em três pequenas partes/verbetes ficcionalmente intitulado de “manual”. Pretensioso como qualquer guia, este ambiciona fazer parte de uma estética das listas elencando apenas três situações sobre a arte como reinvenção de mundo e de modos de viver – a vida de artista, nesse caso, sem obras. O desejo idílico, obsessivo ou fracassado, por uma práxis criativa que ao se deparar com uma acumulação confusa de fenômenos mal definidos, propõe a ordenação de uma lista.

Produzido a convite da revista pernambucana Outros Críticos, onde cada verbete foi publicado em momentos distintos entre os anos 2017 e 2018, nessa ordem: caminhar, juntar e dexistir, o texto é um ensaio livre que exercita e elenca alguns conceitos e autores trabalhados na tese de doutorado Utopias situadas: a construção de situações na arte contemporânea do Recife. Em 2018, o texto é publicado em O outro é uma queda (Vários Autores, Outros Críticos, 2018, p. 240), livro de comemoração dos 10 anos da mesma revista de crítica cultural. 

CAMINHAR

A arte seria garantia de sanidade? Desculpe-me, madame Bourgeois, não estou certa disso. A vida, e a espécie humana herdeira de emanações interestelares, precede a arte. Pois, se a arte é via para bem-estar e alívio imediato, é também indício da existência limitada em que nos metemos.

Parece simpática, e lógica, a ideia de que toda prática artística tenha como ponto de partida uma intenção existencial. Nesse sentido, a arte antes de produzir objetos carregados (signos), é uma forma de experiência que requer um contínuo exercício de si.

Na história da cultura ocidental, há uma série de práticas ascéticas, individuais e coletivas, realizadas com o objetivo de constituir esteticamente a vida cotidiana. Desde o antigo mundo grego, um exemplo de ferramenta criativa individual é o skechtbook. Essa caderneta de uso pessoal mantém em comum com a antiga hypomnemata funcionar como um repositório de citações, reflexões e anotações sobre coisas lidas, ouvidas ou pensadas, não com a finalidade confessional de um diário, mas com o objetivo da construção prática de si pela escrita. Um treinamento de si, que Foucault nos aponta como modo de subjetivação centrado na ideia de um si que deveria ser criado como “obra de arte”: uma ética que é uma “estética da existência”.

Outro processo ainda mais direto e representativo de um modo de existência autônoma é o caminhar. O andar só contempla simultaneamente um ato cognitivo e criativo quando se dá livre de atividades mais funcionais, sobretudo aquelas que pretendem atender uma demanda do moderno campo da arte. Numa pedalada de bicicleta, por exemplo, ao se cessar o movimento se tomba. Com um impulso semelhante, deambular criativamente preza mais pelo encadeamento de um fluxo contínuo do que pela realização de rotas entre espacialidades. O caminhar como instrumento estético encontra seu valor, pois, no movimento contínuo do devir e na errância do desvio.

Por fim, caminhar parece ser uma estratégia sine qua non a um artista sem obras. Ao lançar seu corpo no espaço, o andarilho pode se deparar com muitas condições adversas. Ele entra num jogo bem mais complexo do que aquele assegurado no contexto espaço-cultural onde transita o artista com obras. Como observou Careri em suas investidas caminhantes na América do Sul, caminhar nesta zona implica encarar muitos medos, especialmente do Outro, inimigo potencial.

Esse universo de enfrentamentos diários abriga diversas “invenções cotidianas”; artifícios bricoladores acertadamente registrados por Certeau. Criações engenhosas que operam como desvios da norma do instituído, dando esperanças de que, nos interstícios dos códigos impostos, toda uma série de táticas subterrâneas possa dar vida às ações anônimas capazes de desmontar as verdades de discursos morais, políticos e tecnocráticos criando situações espaciais outras, que relutam contra o conformismo.

Caminhar é interessante por se tratar de uma prática política e estética, que presume um desejo ético antes de um estético. Mais uma vez, estética da existência e encontro do que nela escapa.

JUNTAR

O artista sem obras atua, em constante estudo e autodesignação, dentro de uma concepção de arte que tende a se perder quando extrapola seus limites, levando a preencher consigo mesmo nosso mundo.

Trata-se de uma abordagem de arte, e de artista, que encara e manipula a tensão que engloba o trágico da vida cotidiana e suas potencialidades; que se liga à qualidade do agir humano atento às energias latentes na vida e nas relações sociais nelas imbricadas.

Uma vez que a sociedade eurocêntrica alcança o aparente estado de “natureza vencida” * é gerado um novo conflito, expresso na contradição entre a abundância de bens materiais produzidos e na forma de utilizar esses recursos e da sociedade determinar de modo consciente os seus objetivos. Nesse contexto, no qual um sistema da arte é inevitavelmente constituído – e, rapidamente, assimilado por geografias periféricas –, o artista posiciona-se diante de um panorama de produção condicionado, onde trabalho e tempo passam a ser, invariavelmente, os principais produtores de valor das sociedades ditas modernas.

Nessa conjuntura, armada aos moldes que se mantêm na atualidade desde o começo do século XX, surgem os trabalhadores da cultura e a proliferação de vários profissionais para o funcionamento da indústria arte. Artistas, curadores, críticos, designers de expografia, educadores, administradores, patrocinadores, entre outros. Ao se juntar, esses empreendedores especializados se concentram na produção de bens simbólicos e discursos significativos.

Mas, nesse mesmo andamento, surgem grupos de agentes culturais progressistas que contestam esse cenário. Eram interessados em apontar os riscos de alienação e fetichização das obras e contextos envolvidos no processo de produção e disseminação cultural. Fundavam uma ação crítica por meio da vivência criativa no cotidiano, o que incitava, por sua vez, no desejo idílico de supressão entre arte e vida diária. Esses grupos buscavam ainda, a superação da antiga arte individualista e burguesa em nome de uma postura mais imediatamente revolucionária e coletiva.

Distantes do compromisso de gerar produtos que pareçam arte e da ideia de arte como criação de obra individual e única, esses grupos e posteriores artistas por eles influenciados direta ou indiretamente, convergem para uma recusa em produzir obras que não questionem a própria natureza do trabalho (ou do papel) do artista.

Ao se juntar com outras pessoas, o artista sem obras tende a construir coletivamente situações autônomas que, embora efêmeras e, contemporaneamente, não operantes da revolução almejada pelas vanguardas europeias, equivalem à realização de pequenas utopias de desvio. Desvio de modelos comportamentais reificados por hábitos e exigências sociais ditados pelo que chamamos de campo da arte.

Ele atua, assim, na formação de um “momento”, como formulado na Teoria dos momentos de Lefebvre; promove uma crítica ao cotidiano, negando o modo como este é organizado e mortificado pela forma abstrata assumida pela atividade social, na qual o trabalho na produção de obras não se exime.

Juntar-se, sendo um artista sem obras, na atualidade, acontece em um movimento dialético em que muitas vezes coabitam estratégias de autolegitimação e inserção em um sistema artístico, por reconhecimento entre pares, e refutação desse mesmo sistema pela economia de energia em trabalho especializado. Nessa acepção, recusa-se o desenvolvimento de competências exclusivamente artísticas, em favor de comprometimentos cotidianos diversos que revelam uma agenda cheia para quem toma como partido poético as reinvenções (e astúcias) subjacentes em Ser artista; nesse caso, sem obras.

* Referimo-nos à célebre previsão en passant no livro Dos Novos Sistemas da Arte, do artista russo Malevicth, no qual profecia: “A natureza será vencida, pois minhas pernas não são nada em comparação com as rodas criadas por mim. O trem transportará a mim e a minha bagagem ao redor da Terra com a rapidez de um relâmpago. Comunicar-me-ei com as cidades fácil e confortavelmente”.

DEXISTIR

Um artista sem obras se faz – pois não se trata de uma coisa espontânea – quando se desfaz de suportes, ou de uma especificidade técnica, e quando passa a ser propositor na construção da própria vida como universo poético. Embora não seja um especialista, o artista sem obras tem a capacidade de emergir acima da alienação cotidiana porque radicaliza sua experiência diária, transformando momentos banais e tragicamente magníficos do dia-a-dia.

Ora, um modo de existência artística, carregado de “atividades ordinárias”, se firma ao colocar em prática uma poética que ultrapassa uma série de transformações formais e se estabelece no plano político. Esse modo de existência é fruto de mudanças subjetivas e ruptura com uma série de significações dominantes. Revela o esgotamento nos campos legitimados da arte e da política partidária, que criam ilusões de inteireza (de nós, de justiça, de liberdade, de futuro) sob a lógica das reivindicações palpáveis, e não dos desejos, sempre instáveis e conflitantes.

Dexistir, para um artista sem obras, é promover uma estética que implica numa ética, ou seja, na construção da vida como realização artística que prescinde da presença de obras de arte.

Nessa acepção, o objeto de arte em seu modo de apresentação costumeiro, voltado para uma audiência, seja no museu ou mesmo fora do abrigo institucional, não é mais indispensável. Pensar o artista sem obras é deslocar, pois, a compreensão da arte em seus códigos mais bem delimitados, como aqueles que privilegiam realidades manifestas ou a construção de imagens.

Desistir de produzir obras, e refutar um modo de produção cultural, acontece como negação da formação de uma nova realidade em favor da ação de existir nela. Dexistir não é apenas a sustentação do desinteresse de agir de um artista sem obras, é antes fazer pensar planos de existência descartados cotidianamente – “futuros soterrados no passado” **. É clamar por uma inversão na forma de operar do artista ao Ser propositor de experiências e instaurar um o modo de existência estética por vir.

Assim, busca-se uma problematização do sujeito numa estética que ultrapasse a parafernália construída em torno da lógica do espetáculo e dos códigos da genealogia do sistema da arte. E nesse caso, ao tomar partido pelo sujeito que desiste, esforçamo-nos por indicar a necessidade de avançar em movimento oposto a um pragmatismo da percepção, para desvelar a pluralidade dos modos de existência do artista; não para ver o que ele vê, mas para fazê-lo existir mais. Dexistir como a arte de existir.

** Cf. Peter Pál Pelbart, “Por uma arte de instaurar modos de existência que ‘não existem’”, in: Catálogo da 31ª Bienal de São Paulo. Fundação Bienal: São Paulo, 2014, p. 264.

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