Breve Opúsculo que Institui a Infertilidade como o oposto da Vida e não a Morte:  33 Notas sobre a Certeza como Desabrigo. Marcelo Coutinho

Breve Opúsculo que Institui a Infertilidade como o oposto da Vida e não a Morte:  33 Notas sobre a Certeza como Desabrigo.

Marcelo Coutinho

 

1. Há cinco anos uma mulher me disse que o suicídio era, no fundo, um desejo de nascer novamente.

2. Eu nunca havia pensado nesse ato de ultimação, ato auto infligido de consumação, que se efetiva antes mesmo da própria ação, como contendo em si seu oposto: o desejo de permanecer, de viver outra coisa.

3. Isto reverbera em mim até hoje e, quem sabe, reverbere assim por eu ser incapaz de conceber a morte como um fim.

4. Sou simplesmente incapaz de pensar que algo finda.

5. Nunca fui capaz sequer de pensar que alguma coisa, qualquer coisa, seja desprovida de vida.

6. A vida sempre me pareceu habitar mesmo os mortos que estavam ativamente se dissolvendo, gerando algo, para cima e para abaixo, permanecendo em sua saga, sempre além deles mesmos.

7. Me afeiçoava à pedras e seixos quando criança.

8. Nunca as colecionei mas sempre as batizei.

9. Haviam pedras mais rápidas e mais lentas.

10. Saber qual tipo levar no bolso era uma questão de profundo conhecimento e estratégia. 

11. Quando criança, tratei de pardais com pernas quebradas retirando de mim alguma quantidade de vida que transferia para seus corpos doentes.

12. Pensava ser capaz de mover quinhões de minha vida para eles através do toque das mãos e do pensamento.

13. Nunca soube se deu certo mas tenho certeza que fiz o que pude.

14. Os lugares - me refiro a ambientes - para mim nunca foram inertes.

15. Eram ativos e geravam uma singularidade qualquer.

16. Já adulto eu senti que os lugares, ou seja, os espaços, possuem ciclos de vida.

17. Morando no mato tantos anos garanto que nos lugares jovens a matéria, distraída do que nela habita e tremula, tudo nascerá, se precipitará, virá em outra matéria, apressadamente.

18. Nos lugares jovens tudo é exógeno, tudo tende para fora de si.

19. Os lugares jovens são sonoros, luminosos, aromáticos e tendem, naturalmente a exuberância dos entre-choques.

20. Como ali tudo brota, tudo também fenece rapidamente, despercebido, mesmo que tudo que ali excede tenda a subir, subir na direção da luz que incide vertical sobre o chão.    

21. Os espaços jovens regeneram matérias através de seu excesso de juventude e as aquietam, mantendo-as por mais tempo aqui.

22. Outros espaços aquietam em sua clareira a matéria que, em sua hesitação em deixar de ser para si, vai e assim indo, sempre indo, apavora-se nesse ir infinito.

23. Os espaços velhos, pude reparar, abraçam, acalmam e dizem no pé do ouvido da matéria: “Vai, meu amor... deixe-se ir, meu todo degenerado... tudo vai... tudo sempre foi... e sempre irá... vai meu amor... pois tudo sempre foi... para que nunca deixe de vir à ser... outro... essa é a saga”.

24. Os espaços velhos, assim, dobram-se sobre si e, sob brisa leve, apresentam para a matéria, que tremula duvidosa do que virá, o inexperado que as constitui.

25. O espaço é algo que surge do movimento incessante de interação entre as coisas e que excede as coisas.

26. Talvez seja a luz essa propriedade que envolve tudo, que é gerada por tudo e que gera tudo.

27. Não.

28. Talvez seja o som essa propriedade que envolve tudo, que é gerada por tudo e que gera tudo.

29. Não.

30. Os espaços nascem, crescem, amadurecem e por fim desaparecem.

31. E geram em si e para si vidas que se apresessam, outras que se demoram, algumas que adiam eternamente sua chegada, outras que nunca virão.

32. Nunca será a morte que que se opõe à vida.

33. O que se opõe à vida é a infertilidade.

 

(Texto que faz parte do livro de crônicas "Mormaço" ainda inédito)  

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