Katastrophe como força de criação
A palavra “catástrofe” teve sua força diminuída no correr da história. Sua força originária nascida do grego adormeceu, exibindo hoje não mais que a pálida sinonímia de desastre, de infortúnio convulsivo, evento que levaria um dado estado de coisas à sua consumação.
Porém, é necessário nos darmos conta que em toda “catástrofe” ainda habita uma “katastrophe” (καταστροφή). Em seu solo primeiro, catástrofe é a união das palavras gregas “kata”, “para baixo” e “strephéin”, “dar a volta” ou “reviravolta”.
Originalmente “katastrophe” era palavra de uso teatral e indicava um recurso dramatúrgico que impunha sobre o enredo em seu final uma grande reviravolta. A reviravolta narrativa pegava no contrapé o espectador, subtraindo-o daquilo que esperava como sendo o rumo natural da história. A “katastrophe” do teatro grego, portanto, surpreendia a plateia desavisada ao final de uma tragédia ou comédia, conduzindo a história à um rumo trilhado pela própria vida: o imprevisto.
Recuperando essa semente grega, toda catástrofe recobra a memória e pode voltar a ser “katastrophe”, encarnando a força do inesperado. Em katastrophe o fluxo da vida não se aquieta diante de qualquer naufrágio do horizonte e cria uma vereda que escapa ao previsível. Em katastrophe suspende-se o costumeiro, arromba-se o habitual que, mortífero, tende a atar o futuro aos vícios do presente. Em katastrophe a vida se livra de toda aporia e pode surpreende-se, reintegrando os viventes ao seu fluxo e ao seu devir.
Podemos extrapolar o “theatron” grego, o lugar onde tudo se vê. E indo além dele nos damos conta que se há uma força que todas as artes conclamam e encarnam, sejam elas quais forem, será exatamente a força desadormecida da katastrophe. Força que revolve a terra, que impele tudo o que há para o seu fora. Que desfaz o silêncio das sementes. Que se anuncia como o reverso de todo prenunciado.
Em katastrophe a arte será, portanto, uma maneira de acordar, será uma espécie qualquer de anti-barbitúrico. Ela servirá de porta arrombada, para que esta presença revolta surja, para que o hálito deste incêndio, sem nome e sem idade, adentre. Vista assim a arte é a grande metáfora da vida, uma equação sempre precária entre Erós e Tanathós, o miolo glorioso de todas as tragédias.
Em katastrophe a arte bem pode ser comparada a um tipo de incêndio. E é bom que se diga que nem todos os incêndios são criminosos. Há incêndios naturais que transformam densas florestas em clareira calcinada. E são as cinzas do que se foi que fertilizam a terra para que novas contorções da vida possam brotar.
Falar de incêndios é falar de impermanência. Falar de incêndios é sentir a precariedade que respira em tudo. Falar de incêndios é dar voz a incerteza. Falar de incêndios é falar de uma cega fidelidade à vida. A vida: esse açoite lançado sobre tudo que se quer fixo, certo e eterno.
Esta fidelidade cega pode levar um homem a abandonar tudo. A nada salvar do fogo que calcina sua casa, além do próprio fogo. É isso o que sugere Jean Cocteau ao dizer: “se minha casa pegasse fogo, eu salvaria o fogo”.
Marcelo Coutinho, hemisfério sul, início de verão, 2018