128 Notas sobre o Adormecimento e a Arte como Vida Desperta Marcelo Coutinho 

128 Notas sobre o Adormecimento e a Arte como Vida Desperta

Marcelo Coutinho 

 

1. Do Devir e de sua Desadormecida Potência 

1. Há cerca de um ano atrás desenvolvi a ideia de “Zonas de Adormecimento”.

2. A minha ideia de “Zonas de Adormecimento” surgiu como efeito e reverberação de outro conceito.

3. Conceito este que lhe serve de espelho invertido, ou negativo: o de “Zona Autônoma Temporária”, desenvolvido pelo ativista anarquista Hakim Bay [1].

4. O conceito de “Zona Autônoma Temporária” desafia e desmonta a ideia de estado, a ideia de identidade, a ideia de permanência, a ideia de propriedade e de qualquer organização hierarquizada.

5. Além disso acusa claramente que todo empreendimento informado pela lógica do espetáculo é, simultaneamente, comprometido com a ideia de hierarquia e, consequentemente, de poder.

6. Sente-se neste conceito o hálito de Gilles Deleuze.

7. Será Deleuze que falará de “devir revolucionário”, para descrever a força entrópica que informa os primeiros passos de um colapso social e suas subsequentes revoluções [2].

8. Esta força entrópica, libidinal e desejosa, desadormecida e inaugural, romperá ordenamentos, livrará o presente da clausura das repetições, e o abrirá para seu devir.

9. Porém, a força irruptiva deste “devir revolucionário” não se manterá após a saudável embolia que provocou.

10. Logo surgirão forças de estratificação.

11. E estas forças desaquecerão a irrupção entrópica e solidificarão a liquefação produzida pela mudança.

12. Da mesma ideia deleuziana de “devir revolucionário” surge outra.

13.  Trata-se da diferenciação entre duas palavras etimologicamente ligadas: “poder” e “potência”.

14. Potência é aquilo que eleva a singularidade dos seres ao máximo de si.

15. Potência é a maximização da natureza singular de cada ser.

16. Potência é a capacidade dos seres de irem na direção de seu self-enjoyment.

17. Potência é, portanto, algo que não se aplica à lógicas da representação.

18. Já o poder é o exercício de um lugar social pre-existente.

19. Se a potência lida com a diferença, o poder lida com a identidade e a identificação.

20. O exercício do poder, portanto, é a anulação de toda potência.

21. Para exercer poder faz-se necessário abrir mão e eliminar a natureza singular que funda cada um em sua singular potência.

22. O poder é uma força fraca e impotente que dependente do outro e só sobre a alteridade pode se exercer.

23. Enquanto a potência é um fluxo, cuja natureza é desfazer os lugares e identidades, o poder é um túmulo no qual se resfria e quer se desacelerar o devir.

24. A “Zona Temporária Autônoma” é precisamente o devir revolucionário deleuziano.

25. Funciona como a elaboração de experiências sociais que não visam poder ou quaisquer que sejam as formas de representação e instauração deste poder.

26. Portanto a chamada “TAZ” de Hakim Bay e o “devir revolucionário” de Deleuze desenclausuram o presente e querem livrá-lo dos mortíferos movimentos de repetição próprios da economia social.   

 

2. Das Zonas de Adormecimento

27. Já as minhas “Zonas de Adormecimento” descrevem o contrário dessa energia libidinal.

28. As “Zonas de Adormecimento” são as produções incorpóreas geradas pela doxa e que tendem a realimentar e gerar doxa[3].  

29. Os contextos humanos sempre construíram e continuarão a construir para si Zonas de Adormecimento.

30. É verdade que a maior parte das produções simbólicas, já em sua essência, visa e deseja o adormecimento próprio da doxa.

31. Seja como for, a natureza universalizante da doxa tende à supressão da diferença.

32. E por sua vez, a natureza indócil da diferença será sempre a ruptura e o colapso da doxa.

33. O que chamei de Zonas de Adormecimento não apenas geram doxa como garantem a sobrevida da doxa que produzem.

34. São as Zonas de Adormecimento que geram os Estados Nacionais.

35. São elas que escrevem as constituições que, aparentemente, ao menos para a doxa, regem estes estados nacionais.

36. São as Zonas de Adormecimento que regem os contratos de trabalho que, por sua vez, geram a ideia de propriedade, propriedade do patrão e propriedade do empregado.

37. São também elas que estabelecem o valor de uma obra de arte.

38. E também são as Zonas de Adormecimento que constroem o prazer que um objeto de desejo é capaz de produzir naquele que o conquista. 

39. As Zonas de Adormecimento estabelecem o que é obra de arte e o que não é obra de arte.

40. Serão as Zonas de Adormecimento que, por exemplo, normalizarão a anormalidade febril dos infraleve de Marcel Duchamp [4].

41. O que chamo de Zonas de Adormecimento não quer refazer perguntas, tampouco refará as fundamentais: “O que é a vida?”.

42. Nas Zonas de Adormecimento as perguntas e as respostas possuem remetente e destinatário controlados.

43. As perguntas devem vir de certos lugares para que tenham alguma pertinência.

44. E assim serão respondidas por aqueles que se especializaram em construir as respostas.

45. A supressão do refazer de perguntas fundamentais é o que visa as Zonas de Adormecimento e é o trabalho em que mais se empenham.

46. Afinal, para que se refaça certas perguntas, certas perguntas fundamentais - como por exemplo “o que é a vida?”- é necessário que haja um desacordo fundamental com as respostas até então dadas.

47. “O que é a vida?” é uma pergunta tão primária e inaugural, que atravessa qualquer mesquinha ideia de campo disciplinar.

48. Pois nesta pergunta habita outras que surgem em descontrole: por qual motivo o biólogo teria mais autoridade a falar do bios, o físico a falar da phisis ou o filósofo a falar do ser, já que natureza, vida e ser são o fundamento de tudo e de todos?

49. É importante dizer que as Zonas de Adormecimento na verdade nunca farão perguntas.

50. Não é de sua natureza fria perguntar.

51. Afinal, toda pergunta é uma chama ou um rasgo de luz lunar na noite.

52. Toda pergunta é um desacordo.

53. E assim, a natureza da pergunta desacorda algo que dorme no escuro das noites espessas.

54. As Zonas de Adormecimento não passam de um rito fraco e degenerado.

55. Aqueles que se engajam nos ritos fracos das Zonas de Adormecimento não atualizam a eternidade.

56. Elas encenam o mortífero ciclo de repetições do mesmo.

 

3. Do Encontro Desadormecido

57. Edmund Husserl no inicio do século XX chamou atenção para este adormecimento.

58. Adormecimento este que adia ou nega o encontro inaugural, singular, adâmico, do homem com o mundo.

59. Husserl indica um movimento de regresso às bases primeiras do encontro interrogativo com o mundo.

60. Chamará de “redução eidética” o método básico de sua fenomenologia nascente.

61. E indicará que este método seria exatamente o esforço de afastamento da doxa.

62. Este desejo de retorno ao encontro, esta busca por uma página em branco, por uma perene inauguração adâmica do mundo é o que manteria para nós em circulação até hoje a força, o Kairós, próprio da fenomenologia e, antes da fenomenologia, próprio da existência, da vigoração do ser.

63. Apenas assim, e tão somente assim, se operaria um furo naquilo que, de tão bem assentado, nada mais é capaz de dizer além de repetir. 

 

4. Da Vida que em Mim Vive.

64. Heidegger irá falar de um elemento que marca profundo cada homem: somos “esquecidos de nosso esquecimento”.

65. Poderíamos dizer de outra forma: somos ignorantes de nossa ignorância.

66. Ignoramos que ignoramos.

67. Confundimos o que somos com aquilo que o mundo nos impele a ser.  

68. A ideia heideggeriana de “esquecimento do esquecimento” significa que o homem se descuida de si e naufraga a sua natureza singular em modelos de verdades padronizados, abrigando-se naquilo que chamei de Zonas de Adormecimento.

69. O “esquecimento de si” surge como efeito da adoção destes modelos e verdades, externos ao próprio sujeito e sua natureza. 

70. Para Foucault, o desenrolar da filosofia no ocidente separa os “cuidados de si”, meta fundamental na Grécia, do pensamento filosófico.  

71. E o acato dos modelos de verdade e de exercícios do indivíduo leva o homem ao esquecimento de si.

72. Foucault chamará de “estética da existência” este processo de ruptura com as Zonas de Adormecimento.

73. Esta estética é um trabalho a ser feito sobre si mesmo.

74. Haveria de se fazer, antes, um trabalho de regresso a si mesmo.

75. Assim, uma ruptura com o esquecimento pode ocorrer.

76. Criar a si mesmo a partir dos escombros da doxa.

77. Após este trabalho sobre si, tal qual o Zaratrusta de Nietzsche, regressamos ao mundo.

78. E refazemos criativamente as relações com os outros e com o mundo. 

79. Esta estética, este trabalho de poiésis sobre si mesmo é também uma ética. E uma política.

80. Pois ao construir-se, ao criar a si mesmo, ao fazer vigorar sua singularidade,  construímos micro Zonas Autônomas Temporárias. 

81. Ou seja, construímos focos de resistência às estruturas de poder.

82. E oferecemos ao conjunto da sociedade uma fratura, um rombo.

83. A fratura, o rombo que cada um de nós é.

84. Uma fratura nos aparelhos de normalização, repetição e controle dos modos de viver.      

 

5. Do Mundo como um Outro, da Vida como Ética e Estética do Encontro.

85. Lévinas diz: “A ética é a primeira filosofia” [5].

86. Para Lévinas sua filosofia seria o esforço em descrever a relação com o outro. E esta relação não seria uma relação de “compreensão”. 

87. A partir de Lévinas, penso nesta relação como a renovação de um abismo.

88. O outro é uma queda.

89. Uma gloriosa e trágica queda.

90. Portanto, a ética como primeira filosofia seria algo incontornável.

91. Seria a natureza, seria o cerne da própria reflexão.

92. Afinal, a reflexão, o filosofar seria a perene renovação do vislumbre desta fratura, esta experiência de perdição que é tentar perseguir perfumes ou odores.

93. A reflexão seria a experiência desta intransponibilidade ontológica do pensamento, da compreensão.

94. O outro é outro mundo.

95. O outro é incogniscível  em sua inteireza.

96. Sendo assim, todo ato cognoscente sobre o mundo seria a reencenação da queda, do encontro com o abismo.

97. Lévinas dedica-se à este outro ao qual me refiro procurando enxergar o rosto específico de cada ser humano.

98. Ele dedica-se a falar sobre o risco de vermos no outro tão somente a humanidade perdendo assim de vista, o homem.

99. Ao nos retirarmos da presença do outro passamos a nos relacionar com uma ideia ou conceito.

100. Passamos a nos relacionar com algo desprovido, portanto, de existência e consequentemente, de presença.

101. Fundamos ou reforçamos uma metafísica do outro e não uma ética que atue na imanência, na presença do encontro. 

102. Funda-se o outro, portanto, como um incontornável acordo.

103. Este acordo tenta costurar ou atar uma fratura ontológica: eu nunca poderei saber ao certo o que ali se passa.

104. Há verdade em suas palavras? Sua dor é real?

105. A dimensão ética está na certeza da queda e nesta atenção e aposta pela verdade suspensa de uma palavra: um acordo.

106. A dimensão estética, que se confunde com a ética (quando a obra é a vida), é a construção meticulosa deste enlace da mesma forma que, digamos, Richard Serra dispõe placas de chumbo de forma a criar uma suspensão, mesmo que temporária, um sursis para a gravidade.         

107. Lévinas se dedica à este outro que habita o outro ser humano.

108. Mas penso ser possível ir além da alteridade de Levinás, E pensar que este outro transcende em muito todo humanismo.

109. O outro para mim é aquilo que funda e habita o coração de tudo.

 

6. Da Poesia para Além do Poético, da Arte para Além do Artístico.

110. “Poeticamente o homem habita essa terra”, diz Hölderlin em seu poema célebre [6].

111. Heidegger irá usar este verso para pensar, a partir dele, a essência do humano.

112. Este “poético” evocado por Hölderlin, por um lado, recupera o solo etimológico que está na palavra grega poiesis.

113. Ou seja, trata-se de recuperar para a palavra “poético” seu halo ação, ação e fazer, de práxis e produção.

114. Por outro lado, este mesmo halo dota a palavra “poético” de uma qualidade especial no uso da palavra e o do ato de dizer.

115. O uso poético da palavra vai para muito além da atividade profissional do poeta ou do lugar social da poesia.

116. Dizer que “poeticamente o homem habita” é dizer que a essência humana é dotar de sentido a vida.

117. Não se trata aqui, portanto, de reduzir o poético ao poeta.

118. Tampouco reduzir o poético a poesia.

119. O poético não cabe no campo literário.

120. Assim com o habitar não se reduz à arquitetura que abriga o homem.

121. Habitar poeticamente é ir para além da habitação.

122. Habitar poeticamente é, antes, produzir um sentido para a existência.

123. Poderíamos dizer de outra forma e falar de uma qualidade da presença.

124. Construir a qualidade da presença seria, a meu ver, o mesmo que falar sobre o “habitar poeticamente”.

125. Hoderlin-Heidegger parecem indicar essa qualidade do estar como sendo a essência do humano.

126. O ser seria portanto uma poiesis, uma produção. O ser seria a produção dessa qualidade do estar.

127. Diz Heidegger: “A poesia ou bem é negada como coisa do passado, como suspiro nostálgico, como vôo ao irreal e fuga para o idílico, ou então é considerada como parte da literatura.”

128. Sendo assim, a arte e a vida já há muito tempo não eram encaradas como possuindo entre si uma fronteira.

 

(texto escrito para o livro "O outro é uma Queda", produzido e editoriado por "Outros Críticos", Recife, PE, 2018)   

 

[1] BAY, Hakim. TAZ Zona Autônoma Temporária. Coletivo Sabotagem: Contra-Cultura. http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/arq_interface/4a_aula/Hakim_Bey_TAZ.pdf

[2] DELEUZE, Gilles e Claire Parnet. Diálogos. Lisboa: Relógio D Água Editores, 2004. p. 22-24.

[3] A palavra grega dóxa deriva do verbo dokéo que possui duas significações básicas. Por um lado define a escolha de um partido que se julga mais adequado numa certa situação. Por outro significa conformar-se a uma norma estabelecida pelo grupo. Este sentido da subordinação individual à opinião do grupo é a base da assembleia dos guerreiros e que deu origem ao conceito e a montagem da pólis na Grécia. Ou seja, na base da formação da cidade grega está a construção das convenções grupais da doxa. (CHAUÍ,  2002, p.499)

[4] O conceito de “Infraleve” foi criado por Marcel Duchamp e procura definir algo volátil e imperceptível, nascido pela diafaneidade natural da banalidade do dia-a-dia, ou seja, da vida. O Infraleve, desta forma, é o prolongamento gestual e conceitual do ready-made. Duchamp organizou 46 notas sobre o seu infraleve. Uma delas define o infraleve assim: “”Pantalonas de pana -/ su ligero silbido (al andar) por / roce de las 2 piernas es uma / separacion infra leve indicada / por el sonido. (no es um sonido infra leve?) (DUCHAMP, 1989, p. 23)

[5] LÉVINAS, Emmanuel. Da Existência ao Existente. Campinas: Ed. Papirus, 1988.

[6] O poema de Friedrich Hölderlin chama-se “No Ameno Azul”:

“No ameno azul floresce, com o seu telhado de metal, o campanário. À sua volta paira a gritaria das andorinhas, rodeia-o o azul mais comovente. O sol ergue-se, alto, sobre ele, e dá cor à chapa metálica, mas é no seu cimo que, ao vento, suavemente, canta o catavento. Quando alguém então desce para o patamar do sino, por aqueles degraus, há uma vida silenciosa, pois quando a sua figura está assim tão isolada, sobressai a plasticidade do homem. As janelas em que os sinos tocam são como arcos de beleza. Pois os arcos ainda imitam a Natureza, são semelhantes às árvores da floresta. E o que é puro também é belo. No interior, da diversidade surge um espírito sério. E as imagens são tão simples, tão santas, que muitas vezes verdadeiramente se teme descrevê-las. Porém os Celestiais, que são sempre bondosos, uma vez que tudo têm, como os ricos, possuem a virtude e a alegria. O homem pode imitá-los. Mas poderá o homem, quando toda a sua vida está cheia de trabalhos, erguer o olhar e dizer: assim quero eu ser também? Sim. Enquanto a amabilidade pura habitar no seu coração não será uma atitude infeliz o homem medir-se pela divindade. Será Deus desconhecido? Será manifesto como o Céu? Antes isto creio. É a medida do homem. Cheio de mérito, mas poeticamente, vive o homem sobre esta Terra. E no entanto a sombra da noite e as estrelas não são, se é que posso dizê-lo, mais puras do que o homem, como imagem que é da divindade. Haverá na Terra uma medida? Não, não há. É que os mundos do Criador jamais inibem o curso do trovão. Também uma flor é bela porque floresce sobre o sol. O olhar encontra muitas vezes ao longo da vida seres que seriam mais belos de nomear que as flores. Oh, como o sei bem! Pois agradará a Deus que a figura e o coração sangrem e que se deixe completamente de existir? Mas a alma, tal como penso, deve permanecer pura, pois assim chega ao que é poderoso sobre as asas de águias como um cântico de louvor e com a voz de muitas aves.” (In Hinos Tardios, Assírio &Alvim, Lisboa, 2000. Tradução: Maria Teresa Dias Furtado)

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