O trabalho do artista é um ócio tradicional e um rito selvagem, sustentado por uma insurgência do tempo liberto. É um modo disciplinar e cosmológico de ser que se antagoniza, em essência, à disciplina consagrada ao trabalho alienado na era burguesa. A poética visual de Márcio Almeida na instalação Nheë Nheë Nheë traduz uma deriva autoral que evoca seus mais recentes trabalhos site specific desenvolvidos mediante residência e imersão no imaginário mítico da Usina de Arte Santa Terezinha (Água Preta-PE), com especial destaque para Eremitério Tropical, templo mitopoético que solidifica a cosmologia espacial da pesquisa.
Nheë Nheë Nheë, expressão colonial e depreciativa que faz alusão a uma suposta indolência para o trabalho, “reclamação’’ herdada dos povos indígenas, ao mesmo tempo se refere à falta de entendimento para a diversidade de idiomas e dialetos destas populações. Nheë, em Tupi, quer dizer falar. Nheeng-katu, “língua boa”. A criação do Nheengatu pelos jesuítas, durante o século XVI, no intuito de promover uma língua franca desconsiderando as variações linguísticas e padronizando uma estratégia de comunicação entre os colonos e as populações nativas, representou um vértice da dominação colonial, amparado pela catequese e pela condução forçada do trabalho indígena.
Diante da forma hegemônica de encarar o trabalho no modo de produção capitalista na contemporaneidade, o pensamento clássico da filosofia ocidental, desde Aristóteles, identificou uma modalidade de disciplina autocentrada, orientada para a realização pessoal e para o exercício crítico, sensível e contemplativo da inteligência, que se convencionou chamar de ócio (skholé) e que se contrapõe ao regime de ociosidade ou tempo livre, na acepção burguesa da sociedade industrial, e ao lazer, tempo livre direcionado em consumo, útil e produtivo para o mercado. Mencionando um dos profetas da modernidade, que chamou atenção para a “a história dos vencidos’’, ou seja, as populações marginalizadas do processo colonial no Ocidente, Walter Benjamin restaurou a genealogia da skholé ou ócio aristotélico, percebendo-a nas derivas dos poetas, jogadores e flâneurs da Paris de final do século XIX.
A poética de Nheë Nheë Nheë representa uma experiência autoral de Márcio Almeida, que se exerce mediante dois princípios metodológicos do trabalho de artista: a imersão e a operação antropofágica. Na imersão, aproxima-se do etnográfico, praticando uma tendência situacionista e antropológica da arte contemporânea; é um devir marginal e uma deriva espacial. Interagindo com a cultura rural da população da Usina Santa Terezinha e de seu entorno, envolvendo-se com os aspectos particulares da paisagem do lugar, Márcio Almeida propõe uma reflexão que se engaja num devir marginal que esbarra o etnográfico: apropria-se das relações inconscientes que a população estabelece com o lugar e de suas narrativas, assumindo-as enquanto suporte de criação para elaborar sua própria narrativa mitopoética. A operação antropofágica consiste numa assimilação própria do artista destas narrativas, articulando-as a outros imaginários, globais, nacionais ou regionais; a busca pelas tradições situacionista e do ócio (skholé) ocidentais, pela genealogia nacional do ócio na antropofagia de Oswald de Andrade e pelo imaginário do modernismo regionalista freyreano em Pernambuco, ao propor a centralidade da experiência histórica local para interpretar as heranças das populações afro-indígenas em sua relação com a matriz portuguesa colonial.
A instalação Nheë Nheë Nheë, enquanto espaço imersivo e reflexivo, manifesta um exercício genealógico, regionalista, tropicalista e antropofágico, de uma retomada filosófica e estética do ócio. Nos objetos apresentados, apropria-se de galhos colhidos na Usina de Arte Santa Terezinha, demarcando sua espécie - Oliveira, árvore de origem europeia - e das pás, como ícones do trabalho braçal, a tortura romana “tripalium” no seu sentido mais explícito. Em contraste com os objetos, uma performance atualiza o uso ritual da urna funerária indígena, enquanto representação da experiência coletiva da morte. Na instalação, sobressai o questionamento da dimensão lúdica e reflexiva do ócio, que se traduz como uma busca por uma experiência coletiva atemporal e de fundação das subjetividades e das culturas, seu lugar cosmológico, para além da contingência atual que impõe um trabalho de mortificação do indivíduo, reduzido à sua materialidade.
É mirando-se para as populações locais e nativas que se restaura o ócio perdido, a genealogia de um modo de vida atualmente marginal, que, a despeito da referência clássica à filosofia ocidental, divide com esta uma disciplina escolar do bem viver e distanciada da pretensão necropolítica dos governos neoliberais em transformar o Brasil numa zona franca geral. É reforçar a Fenomenologia do Brasileiro, em Vilém Flusser, que nos percebe como negadores de um progresso oficial que atrela a miséria por excesso à miséria pela carência; é um libelo contra o projeto atual de um Eldorado empreendedor e uma evocação do Matriarcado de Pindorama em Oswald de Andrade; sem a fé, sem a lei, sem o rei dos ressentidos na ética outrora jesuítica e agora missionária. A genealogia tropical é o mistério do ócio contra o ministério da miséria.